A propósito de provas combinadas...

(Ashton Eaton, recordista mundial, bi-campeão olímpico)


Um amigo pessoal desafiou-me para escrever algo sobre as provas combinadas. Curiosamente, a disciplina que mais me entusiasma na modalidade. Por ser tão difícil, ingrata e ao mesmo tempo revigorante.
Na verdade, os seus especialistas são verdadeiros super mulheres e super homens. Correr, saltar, lançar, uma e outra, e outra, até sete ou dez vezes, em dois dias, não deixa de ser impressionante.
O universo das provas combinadas compreende duas grandes provas ao ar livre, o decatlo, em homens, e o heptatlo, em mulheres, ambos disputados em dois dias, e em pista coberta o heptatlo, masculino, também em dois dias, e pentatlo feminino, este num único dia!
Depois há um todo um mundo de combinações de provas que se realizam em toda a época e em todos os escalões que preparam para esse evento maior.
Mas o que são estas provas que marcam sobretudos os seus vencedores nos Jogos Olímpicos?

Diferenças
O decatlo compõe a performance em dez provas: no primeiro dia 100 m, salto em comprimento, peso, salto em altura e 400 m; no segundo dia 110 m barreiras, lançamento do disco, salto com vara, lançamento do dardo e 1.500 m.
Já o heptatlo feminino tem no primeiro dia os 100 m barreiras, salto em comprimento, lançamento do dardo e 200 m, e no segundo dia salto em altura, lançamento do peso e 800 m.
É habitual haver pelo menos meia hora de descanso entre uma prova e a seguinte.
Versões em pista coberta
Na pista coberta, a prova masculina compreende o heptatlo (60 metros, comprimento, peso e altura, no primeiro dia, 60 m barreiras, vara e 1000 metros no segundo), para homens, e o pentatlo (60 m barreiras, altura, peso, comprimento e 800 m, tudo num dia), para mulheres.

Pontuação
O triunfo nesta prova consiste no maior somatório de pontos possível com base na performance do atleta, de acordo com a tabela instituída pela Federação Internacional, e que é a tabela húngara de pontuação (1).
Nesta tabela, cujo objectivo é tentar comparar num mesmo padrão todas as marcas na modalidade (se os 10,00 segundos nos 100 metros é equivalente aos 13,25 nos 110 m barreiras) e que, segundo os seus autores, tem uma fórmula base para os diferentes tipos de eventos, e que se baseia nas diferenças entre os recordes mundiais e a milésima marca, de cada disciplina, para acertos dos respectivos padrões.
Nesta tabela, publicada no site da IAAF, sempre que a marca não estiver especificada, adopta-se a pontuação imediatamente inferior (se os 10,24 nos 100 metros não estiverem referidos, e estiver lá a pontuação das marcas de 10,23 e 10,25, então adopta-se a pontuação dos 10,23).

História
 A origem das provas combinadas da Era Moderna está no pentatlo dos Jogos Gregas da Antiguidade e que compreendiam o percursor do salto em comprimento, o lançamento do disco e do dardo, a corrida de velocidade e a luta.
No século XIX houve várias versões de combinações de provas, mas foi apenas em 1904 que surgiu esta variante nos Jogos Olímpicos da Era Moderna. Mas o primeiro decatlo que se assemelha ao formato actual foi realizado em 1911, com o decatlo inaugural dos Jogos Olímpicos a acontecer um ano depois, em Estocolmo, onde surgiu a primeira grande lenda – o norte-americano Jim Thorpe.
As provas combinadas femininas entraram nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964, mas apenas como pentatlo. Só em 1983 receberam a adição do lançamento do dardo e dos 800 metros e foram incluído como heptatlo nos mundiais de 1983 e depois nos Jogos Olímpicos de 1984 em Los Angeles.

(Jackie Joyner-Kersee, recordista mundial)

Lendas
A primeira grande lenda do Decatlo foi Jim Thorpe, de seu nome indígena Wha-Tho-Huk  (Caminho Iluminado), devido ao facto de no momento do seu nascimento, um raio de sol iluminar o lugar em que ele se encontrava. Seu pai, Hiram Thorpe, era filho de uma índia e um irlandês. Sua mãe, Charlotte Vieux, igualmente descendente de índia e um francês.
Foi um dos atletas mais versáteis do século XX: praticava basquetebol, andebol, hóquei, arco e flecha, tiro, natação, canoagem, ténis, squash, hipismo, futebol americano e basebol, tendo sido considerado um dos maiores desportistas do século.
Tornou-se campeão olímpico do pentatlo e decatlo em 1912, foi recebido com festa em seu país, desfilando em carro aberto pela Broadway. Entretanto, por receber dinheiro pelas disputas das partidas no basebol, foi considerado um atleta à época como profissional, algo proibido entre os atletas olímpicos, essencialmente amadores, fato que culminou com a perda de suas medalhas. Na sequência, Thorpe acabou por assinar um contrato de cinco mil dólares para tornar-se a maior estrela dos New York Giants. Em 1982, quase anos depois da sua morte, o Comité Olímpico repôs a verdade desportiva e posteriormente devolveu as medalhas aos seus descendentes.
Outra lenda foi Bob Mathias, que em 1948, com apenas 17 anos, venceu o título olímpico e ainda continua a ser o mais jovem vencedor de uma medalha olímpica de decatlo. Quatro anos mais tarde, em Helsínquia, depois de estabelecer o seu primeiro recorde mundial em 1950, ele ganhou pela surpreendente margem de 912 pontos com um recorde mundial de 7887 para se tornar o primeiro homem a defender com êxito um título de decatlo olímpico.
Mais tarde na vida, transformou-se num político bem sucedido e serviu oito anos como congressista na casa de representantes dos EUA. Morreu em 2006 com 75 anos de idade.
Mais recentemente, o checo Roman Sebrle também se evindenciou com títulos nas grandes competições, mas quem surgiu mais forte foi outro norte-maerciano, Ashton Eaton, que nos Jogos Olímpicos de 2012 conquistou a 13ª medalha de ouro do decatlo para os EUA, a nação mais dominante no evento, sendo que nenhum outro país ganhou mais de duas medalhas de ouro. No ano passado, Ashton Eaton, recordista mundial (9045 pontos), conquistou o seu segundo título olímpico com 8893 pontos, igualando o recorde olímpico que pertencia ao checo Sebrle desde 2004! Após os Jogos do Rio, Eaton anunciou a sua retirada.
Em femininos, a grande lenda é a norte-americana Jackie Joyner-Kersee, que depois de conquistar a medalha de prata olímpica em Los Angeles, em 1984, desfrutou de um período sem precedentes de sucesso.
No heptalo, mas também como saltadora de classe mundial, ganhou medalhas de ouro olímpicas sucessivas em 1988 e 1992, e teve vitórias nos Mundiais de 1987 e 1993.
Ela tem as seis melhores marcas de heptatlo de todos os tempos, incluindo o recorde mundial de 7291 pontos, obtido com o seu título olímpico em Seoul (1988).
Outra lenda é a sueca Carolina Kluft, da Suécia, a heptatleta mais bem sucedida na história do Campeonato do Mundo da IAAF, ganhando medalhas de ouro consecutivas em 2003, 2005 e 2007. De fato, Kluft esteve invicta em 22 competições combinadas desde março de 2002 até sua retirada internacional no final da temporada de 2012 .
A última campeã olímpica, no Rio de Janeiro 2016, foi a belga Nafissatou Thiam (então com  21 anos de idade), que somou 6810 pontos.

Referências portuguesas
Quanto às referências portuguesas, em masculinos continua a ser Mário Anibal, que tem 8213 pontos de recorde pessoal (2001), e que foi 12º na final olímpica de Sydney (2000), sendo no mesmo ano 5º nos Europeus de Pista Coberta no heptatlo (5930 pontos, recorde nacional).
Em femininos, Naide Gomes é a nossa melhor atleta, com um recorde nacional de 6230 pontos (em 2005) e com um recorde no pentatlo em pista coberta de 4759 pontos (em 2004, ano em que se sagrou campeã mundial de pista coberta; foi depois campeã europeia em 2005).

(1) Portugal também tem uma tabela de pontuação, produzida pelo Dr. Fernando Amado, e que na versão de alguns comentadores, se aproxima mais da realidade de comparação entre as diferentes disciplinas atléticas. Esta tabela foi ainda modernizada pelo antigo atleta, arquitecto Luís Leite.

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